Introdução: Um Paraíso Remoto
Três semanas em nossa nova vida sobre rodas já trouxeram mais aventuras do que nossos cinco anos morando no mesmo apartamento na cidade. Como diria minha esposa Fátima, “a vida em um motorhome é como uma caixinha de surpresas, mas em movimento”. E naquela quarta-feira, a surpresa veio em forma de água – muita água.
Havíamos encontrado o que parecia ser o local perfeito para passar alguns dias: uma clareira cercada por árvores majestosas, com vista para um pequeno vale. O céu estava de um azul impossível quando chegamos, e Thor, nosso labrador chocolate de quatro anos, imediatamente aprovou o local correndo em círculos frenéticos ao redor do motorhome. O GPS indicava que estávamos a uns 30 quilômetros da cidade mais próxima, exatamente como planejamos. Isolamento, natureza e paz.
“Acho que encontramos o paraíso, Roberto”, disse Fátima enquanto preparava nosso café da tarde na pequena cozinha do motorhome. Eu só não imaginava que em poucas horas estaríamos pensando se o paraíso não seria, na verdade, um pouco mais seco e menos barulhento.
A Chegada das Nuvens
Estava checando os painéis solares no teto do motorhome quando notei. Ao oeste, no horizonte distante, uma linha cinza-escura começava a se formar. Nuvens. Não aquelas nuvens leves e brancas que trazem sombra refrescante em dias quentes, mas aquelas densas, carregadas, que parecem ter sido pintadas com tinta preta diluída.
“Fátima, acho que vamos ter um pouco de chuva”, comentei casualmente enquanto descia da escada.
Ela saiu para observar o horizonte, com Thor em seus calcanhares, sempre curioso.
“Um pouco? Roberto, aquilo parece o fim do mundo chegando”, respondeu com uma risada nervosa. “Será que deveríamos procurar outro lugar?”
Olhei para o relógio: quase 17h. A luz já começava a diminuir, e a ideia de dirigir o motorhome por estradas de terra desconhecidas não parecia particularmente atraente.
“É só chuva”, respondi com a confiança de quem nunca havia passado por uma tempestade em um veículo que é essencialmente uma lata grande. “O motorhome foi feito para isso. Vamos ficar bem.”
Ah, a arrogância dos novatos.
O Primeiro Trovão
O Prenúncio da Tempestade
O primeiro trovão chegou quando estávamos terminando o jantar. Thor, que nunca foi fã de barulhos altos, olhou para cima como se perguntasse o que havia ofendido o céu. O som reverberou pelo vale, amplificado pelas montanhas, criando um efeito surround natural que nenhum sistema de home theater poderia replicar.
“Quanto tempo você acha que temos antes de começar?”, Fátima perguntou enquanto recolhia os pratos.
“Uma hora, talvez?”, respondi, já me dirigindo para fora para recolher as cadeiras de camping e qualquer coisa que pudesse voar.
Tive exatamente sete minutos. As primeiras gotas caíram como projéteis, grossas e pesadas, criando pequenas explosões de poeira no chão seco. Em segundos, a chuva passou de algumas gotas isoladas para o que só poderia ser descrito como baldes d’água sendo despejados do céu.
Corri de volta ao motorhome ensopado, com Thor me ultrapassando facilmente na corrida. Diferente de mim, ele parecia achar aquilo tudo extremamente divertido.
O Dilúvio Começa
“É oficial”, anunciei ao fechar a porta com força contra o vento que já começava a uivar, “estamos no meio de um dilúvio bíblico.”
Fátima me olhou dos pés à cabeça, água escorrendo pelo meu rosto e roupas, formando uma poça considerável no pequeno espaço da entrada. Thor, igualmente molhado, sacudiu-se vigorosamente, espalhando água por todas as direções possíveis.
“Thor, não!”, gritamos em uníssono, tarde demais.
Foi nosso primeiro momento de risada naquela noite. Não seria o último, mas entre eles, haveria bastante preocupação.
O Céu Desaba
A chuva intensificou-se de um modo que nunca havíamos experimentado antes. No nosso apartamento na cidade, uma tempestade era apenas um espetáculo para ser observado através da janela, seguramente distante, separados por paredes sólidas e vizinhos acima e abaixo. No motorhome, a experiência era visceral, imediata. Cada gota parecia atingir diretamente nossos nervos.
O barulho era ensurdecedor. Milhares de gotas bombardeando o teto de metal criavam uma cacofonia que tornava quase impossível conversar sem gritar. Thor encontrou refúgio debaixo da pequena mesa de jantar, seus olhos alertas acompanhando nossos movimentos frenéticos.
“Você verificou se todas as escotilhas estão bem fechadas?”, gritei para Fátima enquanto checava as janelas.
“Sim, mas acho que—” Ela parou no meio da frase, olhando para cima.
Segui seu olhar. Na junção entre a parede e o teto, uma pequena gota de água formou-se, cresceu, e finalmente cedeu à gravidade, caindo diretamente no livro que Fátima havia deixado aberto sobre o sofá.
“Temos uma goteira”, constatei o óbvio.
Fátima me lançou aquele olhar que esposas reservam para quando os maridos dizem algo incrivelmente redundante. “Não me diga.”
A Primeira Goteira
A Descoberta Indesejada
No nosso antigo apartamento, uma goteira seria motivo para chamar o síndico. No motorhome, era um convite à engenhosidade. Enquanto Fátima protegia seu livro, comecei a procurar a origem da infiltração.
“Aqui! É nesta junção”, apontei para o local onde o teto encontrava a parede lateral. “A vedação deve ter cedido.”
Thor observava nossa operação com interesse renovado, saindo de seu esconderijo para acompanhar mais de perto. A goteira agora havia se transformado em um fluxo contínuo, pequeno mas persistente.
“Precisamos de algo para conter isso”, murmurei, mais para mim mesmo do que para Fátima.
Soluções Improvisadas
“Que tal aquela panela pequena?”, sugeriu Fátima, já se dirigindo ao armário da cozinha.
Posicionamos estrategicamente a panela sob a goteira, criando um som metálico ritmado cada vez que uma gota caía. Parecia que tínhamos ganhado um novo instrumento musical no motorhome.
“Problema resolvido”, disse com um sorriso presunçoso. “Viu? Não é tão difícil lidar com—”
Um barulho surdo interrompeu minha comemoração prematura. No outro lado do motorhome, uma segunda goteira surgiu, desta vez sobre nossa cama.
“Você estava dizendo?”, Fátima ergueu uma sobrancelha, já buscando outra panela.
A Sinfonia das Goteiras
Em menos de uma hora, tínhamos uma orquestra completa de recipientes coletando água: duas panelas, uma tigela, uma caneca grande e até mesmo o pote de ração de Thor, depois de transferir sua comida para um saco plástico.
Cada recipiente produzia um som diferente ao receber as gotas: agudo, grave, metálico, plástico. A combinação criava uma sinfonia aleatória que, em outra circunstância, poderia até ser considerada experimental e artística. Naquele momento, era apenas o som da nossa inexperiência com a vida em motorhome.
“Lembra quando você disse que uma das vantagens de viver em um motorhome era estar sempre protegido dos elementos?”, Fátima comentou enquanto esvaziava uma das panelas já cheias na pia. “Acho que os elementos não receberam o memorando.”
Thor, por outro lado, parecia fascinado com a nova percussão do nosso lar. Ele se movia de um recipiente a outro, observando as gotas caírem como se estivesse assistindo ao mais interessante dos espetáculos.
“Pelo menos alguém está se divertindo”, observei.
A Terra Se Move
O Solo Traidor
Foi por volta da meia-noite que percebemos um novo problema. A chuva não mostrava sinais de trégua, e o terreno sob o motorhome começava a ceder. Um leve, mas perceptível, desnível havia se formado, inclinando todo nosso lar móvel alguns graus para a esquerda.
“Roberto”, Fátima me cutucou enquanto tentávamos dormir, espremidos na parte da cama que ainda estava seca. “Você está sentindo isso?”
Senti. O motorhome estava lentamente escorregando na lama que se formava sob seus pneus.
“Precisamos fazer algo”, disse, já me levantando e procurando uma lanterna.
Thor, que estava dormindo no chão ao lado da cama, abriu um olho, avaliou que não era hora do café da manhã, e voltou a dormir, completamente indiferente à nossa situação precária.
A Operação Resgate
Vestir um casaco impermeável e sair na tempestade foi uma das experiências mais intensas da minha vida. A chuva não caía – ela atacava, chicoteando meu rosto e dificultando a visão mesmo com a lanterna. O terreno havia se transformado em um lamaçal traiçoeiro, e meus pés afundavam vários centímetros a cada passo.
A situação era clara: precisávamos criar algum tipo de tração para os pneus. Em nossa antiga vida urbana, chamaríamos um guincho. Aqui, isolados, éramos por nossa conta.
Lembrei-me dos tapetes de borracha que tínhamos na entrada do motorhome. Não era a solução ideal, mas poderia funcionar. Voltei para buscar os tapetes e qualquer coisa que pudesse ajudar a criar tração.
Trabalho em Equipe
“Você vai mesmo sair de novo?”, perguntou Fátima, preocupação evidente em sua voz enquanto me observava juntar os tapetes e uma pá pequena que usávamos para fogueiras.
“Não temos escolha”, respondi, tentando soar mais confiante do que me sentia. “Se continuar assim, podemos acabar atolados ou, pior, tombados.”
Thor, finalmente interessado nos acontecimentos, veio investigar minha atividade. Quando abri a porta, uma rajada de vento e chuva invadiu o motorhome, e para minha surpresa, Thor saiu disparado para fora, direto para a lama.
“Thor!”, gritou Fátima, já se preparando para sair atrás dele.
“Eu pego ele”, assegurei, embora não tivesse ideia de como convencer um labrador excitado a voltar para dentro durante o que parecia ser a melhor diversão de sua vida.
Para nossa surpresa, Thor não fugiu. Em vez disso, começou a correr em círculos ao redor do motorhome, parando ocasionalmente para olhar para mim como se dissesse “não é incrível?”.
Foi Fátima quem teve a ideia. “Ele pode ajudar!”, gritou da porta. “Use o comando de buscar!”
E assim, em meio a uma tempestade torrencial, às duas da manhã, estava eu jogando um galho para nosso labrador, que entusiasticamente o trazia de volta, apenas para que eu o jogasse novamente. Entre uma busca e outra, eu posicionava os tapetes sob os pneus e usava a pá para criar alguma drenagem ao redor das rodas.
Fátima juntou-se a nós após vestir seu próprio casaco impermeável. Juntos, trabalhamos por quase uma hora, encharcados até os ossos, mas determinados a salvar nosso lar sobre rodas.
A Transformação
O Amanhecer Após a Tempestade
A chuva finalmente diminuiu por volta das quatro da manhã, e conseguimos adormecer, exaustos, às cinco. Quando acordamos, horas depois, o sol brilhava como se a noite anterior tivesse sido apenas um pesadelo.
Abri a porta do motorhome com cautela. O mundo lá fora havia se transformado. O que antes era terra seca agora era um lamaçal impressionante. Nosso motorhome estava cercado por pequenos lagos temporários, e restos de galhos e folhas decoravam todo o perímetro.
Thor pulou para fora antes que pudesse detê-lo e imediatamente começou a brincar na lama, seu pelo chocolate rapidamente ganhando uma nova camada de marrom-terra.
“Acho que não vamos a lugar nenhum tão cedo”, comentei quando Fátima se juntou a mim na porta, uma caneca de café quente em suas mãos.
O Novo Normal
“Sabe”, ela disse após um momento de contemplação, “em nossa antiga casa, uma noite como a de ontem seria um desastre pelo qual reclamaríamos por semanas.”
Ela tinha razão. Uma goteira no apartamento significaria chamados para o síndico, reclamações para o condomínio, talvez até uma ação judicial. Aqui, era apenas parte da aventura.
“Esta é nossa vida agora”, respondi, passando o braço ao redor de seus ombros. “Imprevisível, às vezes desconfortável, mas nunca entediante.”
Observamos Thor, agora completamente marrom, rolando alegremente em uma poça particularmente lamacenta. Ele parecia a personificação da alegria pura.
“E pelo menos um de nós está absolutamente encantado com ela”, acrescentou Fátima com uma risada.
Conclusão: As Lições da Tempestade
Passaram-se três dias até que o terreno secasse o suficiente para podermos mover o motorhome novamente. Três dias de limpeza constante de patas enlameadas, de esperar que nossos sapatos secassem, de esvaziar recipientes posicionados estrategicamente sob as goteiras que descobrimos e consertamos uma a uma.
Durante esses dias, aprendi mais sobre vedação e impermeabilização do que em toda minha vida anterior. Fátima tornou-se especialista em transformar espaços úmidos em aconchegantes, usando todas as toalhas e cobertores extras que tínhamos. Thor, por sua vez, aperfeiçoou a arte de parecer inocente mesmo quando trazia metade do lamaçal externo para dentro do motorhome.
Em nosso antigo apartamento, teríamos considerado essa experiência como um desastre total. Aqui, em nossa casa sobre rodas, era apenas mais um capítulo em nossa história, uma história que estávamos escrevendo dia após dia, quilômetro após quilômetro.
Quando finalmente conseguimos partir, olhei para trás uma última vez. O local que havíamos escolhido por sua beleza agora parecia um campo de batalha. Mas, estranhamente, havia beleza também naquilo: a beleza das coisas reais, imperfeitas, vividas intensamente.
“Para onde agora?”, perguntou Fátima, mapa aberto no colo, enquanto Thor, recém-banhado e novamente chocolate, dormia no pequeno espaço entre os bancos da frente.
“Não sei”, respondi honestamente. “Mas tenho certeza que, seja onde for, será uma aventura.”
E enquanto o motor ganhava vida e começávamos a avançar lentamente pelo terreno ainda úmido, percebi que nunca havia me sentido tão livre, tão vivo e tão grato por ter trocado a segurança da rotina pela imprevisibilidade da estrada. Mesmo que essa estrada, ocasionalmente, se transformasse em um rio.