Os Sinais do Céu
Seis meses na estrada transformam qualquer um. No início desta jornada, eu mal conseguia diferenciar um disjuntor de um fusível. Agora, enquanto observava o horizonte através da janela do nosso pequeno lar sobre rodas, reconheci imediatamente o que aquelas nuvens escuras significavam. O céu adquiriu um tom cinza-esverdeado inquietante, e mesmo de dentro do motorhome, pude sentir a mudança na pressão atmosférica.
“Fátima, acho que vem tempestade grande por aí”, comentei, tentando manter a voz calma enquanto Thor, nosso labrador chocolate, roía despreocupadamente seu brinquedo favorito no sofá.
Fátima parou de preparar nosso almoço e veio até a janela. “Você tem razão, Roberto. Essas nuvens estão idênticas àquelas do nosso segundo mês na estrada, lembra? Quando ficamos presos em Minas por dois dias.”
Como esquecer? Era novatos completos na época, quase entramos em pânico. Desta vez, porém, senti uma estranha confiança. Não éramos mais os mesmos amadores de seis meses atrás.
As Lições do Passado
O céu começou a escurecer rapidamente enquanto eu verificava o aplicativo de previsão meteorológica no celular. Nunca confio em apenas uma fonte desde que fomos surpreendidos por aquela nevasca no Sul. Três diferentes aplicativos confirmaram: uma tempestade severa se aproximava, com previsão de chuvas intensas nas próximas horas.
“Lembra do que Carlos nos disse?”, perguntou Fátima, já separando lanternas e baterias extras.
Carlos era um dos muitos amigos que fizemos na estrada graças a Thor. Durante uma parada em um parque para cães em Florianópolis, Thor praticamente arrastou sua coleira até o enorme pastor alemão de Carlos. Enquanto os cães brincavam, descobrimos que Carlos era um veterano das estradas, com mais de quinze anos vivendo em motorhomes. Foi ele quem nos ensinou sobre os melhores lugares para acampar nesta região e, mais importante, sobre os locais que deveríamos evitar durante temporais.
“Esta área é propensa a alagamentos”, recordei as palavras dele. “Precisamos nos mover para um terreno mais elevado.”
O incidente com Thor na floresta ainda estava fresco em nossas memórias. Há apenas três semanas, durante uma parada em uma área de preservação, Thor havia desaparecido perseguindo algum animal selvagem. Passamos as quatro horas mais angustiantes de nossas vidas procurando por ele, até encontrá-lo cansado e assustado próximo a um riacho. Desde então, nossa vigilância com ele aumentou, assim como nossa atenção aos perigos naturais.
A Corrida Contra o Tempo
Não tínhamos muito tempo. A chuva começou com gotas isoladas que rapidamente se transformaram em um tamborilar constante sobre o teto do motorhome. Thor, que desde filhote tinha pavor de tempestades, já mostrava sinais de ansiedade, andando de um lado para outro.
“Vou prepará-lo enquanto você arruma tudo”, disse Fátima, pegando a camiseta anti-ansiedade que compramos para Thor depois da última tempestade.
Em menos de quinze minutos, tínhamos tudo organizado para partida. Seis meses atrás, levaríamos pelo menos uma hora para fazer o mesmo. Aprendi a guardar os itens pesados sempre nos mesmos lugares para melhor distribuição de peso. Fátima desenvolveu um sistema de organização que permitia transformar o espaço habitável em modo de viagem em tempo recorde.
Liguei o motor enquanto consultava nosso mapa. Carlos havia nos indicado um ponto mais elevado a cerca de sete quilômetros dali, um platô onde outros motorhomes costumavam se abrigar durante chuvas intensas.
A Fúria dos Elementos
A estrada já apresentava sinais preocupantes quando começamos a nos mover. Pequenos córregos se formavam nas laterais, e a visibilidade diminuía a cada minuto. Thor estava seguro em seu espaço especial, equipado com seu colete anti-ansiedade e com seus brinquedos favoritos. Fátima mantinha uma mão sobre ele, enquanto com a outra verificava nossa rota no GPS.
“Estamos a quatro quilômetros do ponto indicado por Carlos”, ela informou, precisamente quando sentimos o motorhome ser empurrado lateralmente por uma rajada de vento particularmente forte.
Nunca havia dirigido em condições tão adversas. A chuva agora caía em cortinas densas, criando uma parede líquida que o limpador de para-brisa mal conseguia dispersar. Reduzi a velocidade para 20 km/h, concentrando-me totalmente na estrada.
Foi quando avistamos a primeira árvore caída. Não era grande, apenas um tronco fino bloqueando parcialmente a via, mas serviu como um aviso claro de que a situação estava piorando rapidamente.
“Conseguimos passar ao lado?”, perguntou Fátima, a preocupação evidente em sua voz.
“Vamos tentar.”
Manobrei lentamente, consciente de cada centímetro do nosso veículo. Seis meses atrás, eu teria entrado em pânico. Agora, sentia-me estranhamente calmo, aplicando cada lição que aprendi nas diversas situações que enfrentamos na estrada.
Água Por Todos os Lados
Conseguimos contornar a árvore, mas o pior ainda estava por vir. A menos de dois quilômetros do nosso destino, nos deparamos com um trecho da estrada já parcialmente submerso. A água da chuva, não tendo para onde escoar, começava a se acumular, formando um pequeno lago que crescia a cada minuto.
“Roberto, acho que devemos parar e avaliar”, disse Fátima, seus olhos fixos na água que se acumulava à nossa frente.
Concordei e estacionei o motorhome em um ponto ligeiramente elevado no acostamento. A chuva continuava impiedosa, transformando o mundo exterior em uma aquarela borrada de cinzas e azuis escuros.
Thor whimpering called our attention. “It’s going to be okay, buddy,” I reassured him in English, a little habit I developed on the road. Something about saying comforting words in another language made them feel more powerful.
“O que fazemos agora?”, perguntou Fátima.
Consultei novamente o mapa. O ponto indicado por Carlos estava mais próximo, mas o caminho direto estava bloqueado pela água. Havia uma rota alternativa, mais longa, subindo por um caminho secundário que parecia contornar a área alagada.
“Temos duas opções: esperar aqui e torcer para que a água não suba mais, ou tentar a rota alternativa”, expliquei, apontando para o mapa.
A Decisão
Analisei a situação cuidadosamente. A água continuava subindo, mas ainda não chegava à altura do eixo do motorhome. A previsão indicava mais três horas de chuva intensa. Se continuássemos parados ali, corríamos o risco de ficar ilhados.
“Vamos pelo caminho alternativo”, decidi finalmente. “É mais longo, mas parece mais seguro.”
Fátima assentiu, confiando em meu julgamento. Era outra mudança notável em nossa dinâmica. No início da viagem, questionávamos constantemente as decisões um do outro, inseguros e inexperientes. Agora, formávamos uma equipe afinada, cada um confiando nas habilidades que o outro desenvolveu durante nossa jornada.
Liguei o motor novamente e comecei a manobrar lentamente, retornando alguns metros para pegar o desvio que havíamos acabado de passar. Foi quando ouvimos um barulho alarmante vindo de fora – o som inconfundível de água corrente, muito mais intensa do que a simples chuva.
O Dilúvio
“Roberto, olhe!”, exclamou Fátima, apontando para o espelho lateral.
O que vi gelou meu sangue: uma verdadeira onda de água lamacenta descia pela encosta ao lado da estrada, ganhando volume e velocidade rapidamente. Em questão de segundos, o nível da água na estrada subiu drasticamente.
“Segure-se!”, gritei, acelerando o máximo que podia para alcançar o desvio antes que fosse tarde demais.
Thor latiu, assustado com o movimento brusco e a tensão repentina. Fátima o segurou com firmeza enquanto eu lutava com o volante. A corrente de água atingiu o motorhome pelo lado, empurrando-nos perigosamente em direção à margem oposta da estrada.
Naquele momento, todos os aprendizados dos últimos seis meses foram postos à prova. Mantive o volante firme, compensando a força da água. Sabia exatamente quanto o nosso veículo podia aguentar – conhecimento que não tínhamos no início da jornada.
Por um momento terrível, senti as rodas perderem a aderência. Estávamos literalmente flutuando, à mercê da correnteza que se formava.
“Thor! Segure-o bem!”, gritei, vendo pelo retrovisor que nosso amado cachorro estava em pânico total agora.
A Barreira Natural
Por um golpe de sorte ou destino, fomos empurrados contra um aglomerado de árvores robustas que serviu como barreira contra a força da água. O impacto foi suave o suficiente para não causar danos sérios, mas forte o bastante para nos ancorar temporariamente.
“Estamos seguros por enquanto”, murmurei, desligando o motor para evitar danos ao sistema elétrico. “Mas não podemos ficar aqui por muito tempo.”
Fátima já estava em modo de ação, verificando Thor, que tremia violentamente apesar do colete. Ela pegou seu cobertor favorito e o embrulhou, sussurrando palavras de conforto.
“Lembra do que fizemos naquela nevasca?”, perguntei, tentando manter a calma enquanto observava a água subir ainda mais ao redor do motorhome.
Fátima assentiu, compreendendo imediatamente. Durante aquela nevasca no Sul, ficamos presos por quase 24 horas e desenvolvemos um sistema de revezamento para monitorar a situação sem entrar em pânico.
“Você monitora a situação externa por 30 minutos enquanto eu acalmo Thor e preparo comida quente, depois trocamos”, ela propôs.
Novamente, nossa experiência acumulada estava fazendo toda a diferença. Não éramos mais os novatos assustados que entravam em pânico com cada imprevisto.
A Estratégia de Sobrevivência
A água continuava subindo, já lambendo o primeiro degrau da porta do motorhome. Calculei que tínhamos cerca de 40 centímetros de margem antes que a água começasse a invadir nosso espaço.
Durante meu turno de monitoramento, utilizei o tempo para avaliar nossas opções. O desvio que planejávamos tomar estava completamente submerso agora. Pelo GPS, pude ver que estávamos em uma espécie de vale, com o terreno subindo gradualmente cerca de 300 metros à frente.
Quando trocamos de posição, Fátima cuidou da vigilância enquanto eu preparava algo quente para comermos. Thor já estava mais calmo, dormitando sob o efeito da familiar rotina que mantínhamos mesmo nas crises.
“Se a chuva diminuir nos próximos 30 minutos, podemos tentar avançar até aquele ponto mais alto”, expliquei para Fátima, mostrando no mapa.
Como se respondendo às nossas preces, a intensidade da chuva começou a diminuir gradualmente. A água continuava alta, mas pelo menos não estava mais subindo com a mesma velocidade.
O Momento da Verdade
Após duas horas angustiantes de espera, com a chuva reduzida a uma garoa fina, decidimos que era hora de tentar nos mover. A água havia baixado alguns centímetros, não muito, mas o suficiente para arriscar.
“Vamos seguir exatamente por onde a estrada deveria estar”, expliquei para Fátima. “Mantenha os olhos no GPS e me avise se eu começar a desviar muito do traçado.”
Thor já estava seguro em seu espaço, mais calmo agora que a tempestade havia amainado. Liguei o motor, rezando para que o sistema elétrico não tivesse sido comprometido pela água.
O motor tossiu uma, duas vezes, para então ganhar vida com seu familiar ronronar. Nunca um som me pareceu tão belo.
“Vamos lá, meu querido”, falei para o motorhome, como se ele fosse um membro da família – e, de certa forma, era.
Comecei a avançar lentamente, sentindo cada reação do veículo, pronto para parar ao menor sinal de problema. A água estava na altura dos pneus, mas não além disso. O motorhome avançava com dificuldade, mas avançava.
A Subida Salvadora
A cada metro conquistado em direção ao terreno mais alto, sentia meu coração bater um pouco mais leve. Fátima mantinha os olhos fixos no GPS, orientando-me quando a estrada submersa se tornava difícil de distinguir.
“Mais à direita… agora reto… estamos indo bem”, ela indicava, sua voz recuperando a confiança gradualmente.
Thor parecia sentir a mudança na atmosfera, sua cabeça emergindo curiosamente do ninho de cobertores que Fátima havia criado para ele.
Após o que pareceu uma eternidade, mas foram apenas quinze minutos de avanço cuidadoso, sentimos o motorhome começar a subir. O nível da água diminuiu para os tornozelos, depois para os calcanhares, até finalmente encontrarmos asfalto seco.
Quando chegamos ao ponto mais alto da estrada, um pequeno platô que oferecia uma vista panorâmica do vale agora parcialmente submerso, permiti-me respirar profundamente pela primeira vez em horas.
Lições da Tempestade
Estacionei o motorhome em posição segura e desligamos o motor. Fátima abriu a porta e saímos todos – inclusive Thor, agora completamente recuperado – para esticar as pernas e avaliar a situação.
A cena era surreal. Grande parte do vale onde estávamos acampados havia se transformado em um lago temporário. Nossa antiga localização estava completamente submersa. Se não tivéssemos reconhecido os sinais e nos movido a tempo, estaríamos em sérias dificuldades agora.
“Sabe o que é mais incrível?”, comentou Fátima, abraçando Thor que explorava curioso o terreno úmido. “Há seis meses, teríamos entrado em completo desespero.”
Ela estava certa. A transformação não era apenas em nossas habilidades práticas, mas em nossa mentalidade. Desenvolvemos uma resiliência que não possuíamos antes, uma capacidade de enfrentar o inesperado com calma e método.
Enquanto observávamos o sol começar a romper entre as nuvens que se dispersavam, percebi que a tempestade que quase transformou nosso motorhome em barco havia, na verdade, confirmado algo importante: não éramos mais os mesmos novatos assustados do início da jornada.
Um Novo Amanhecer
Passamos a noite naquele platô, em companhia de outros dois motorhomes que, como nós, haviam buscado refúgio da tempestade. Eram um casal de aposentados de Santa Catarina e uma família de São Paulo com duas crianças pequenas.
Durante o jantar improvisado que compartilhamos ao ar livre – a chuva agora completamente dissipada – trocamos histórias sobre nossas aventuras na estrada. Para minha surpresa, fomos nós quem mais tinham conselhos a oferecer, especialmente sobre como lidar com condições climáticas adversas e cuidados com pets viajantes.
“Vocês parecem veteranos”, comentou Jorge, o aposentado catarinense, enquanto degustávamos o café que Fátima preparou em nossa cafeteira portátil.
Troquei um olhar cúmplice com Fátima, ambos sorrindo discretamente. Não nos considerávamos veteranos, longe disso, mas também já não éramos os novatos perdidos de seis meses atrás.
Thor, completamente recuperado do susto, brincava alegremente com as crianças da família paulista, como se a tempestade nunca tivesse acontecido. Sua capacidade de viver o presente, sem se apegar aos traumas do passado, era uma lição diária para nós.
Na manhã seguinte, quando os primeiros raios de sol iluminaram o vale abaixo – a água já consideravelmente recuada – tive a clara percepção de que aquela tempestade marcava um novo capítulo em nossa jornada. Havíamos sido testados pelos elementos e sobrevivido não por sorte, mas por competência adquirida.
Enquanto preparávamos o motorhome para seguir viagem, olhei para Fátima e Thor, minha pequena família nômade, e senti uma gratidão imensa pela vida que escolhemos. Com todos os seus desafios e incertezas, a estrada nos transformava diariamente em versões melhores de nós mesmos.
“Para onde vamos agora?”, perguntou Fátima, já consultando o mapa em seu tablet.
Sorri, acariciando a cabeça de Thor que observava atentamente nossos preparativos, sempre ansioso por novas aventuras.
“Para a frente”, respondi simplesmente. “Sempre para a frente.”
E assim, com o sol nascente às nossas costas e a estrada se abrindo à nossa frente, deixamos para trás a tempestade que quase transformou nosso motorhome em barco, levando conosco apenas as lições aprendidas e a certeza de que estávamos mais preparados para o que quer que viesse a seguir.